Gestão de Portfólio (Parte 3) – Trabalho BAU
Após conhecermos os tipos de trabalho e a gestão do trabalho estratégico, finalmente chegamos ao enigmático trabalho BAU. Enigmático, pois, na maioria dos clientes que passei sempre fui perguntado: mas o que é o BAU? Começando pelo princípio, vamos quebrar alguns paradigmas primeiro. Depois explicaremos o conceito e, então, sugeriremos uma forma de gestão para esse trabalho.
O que é BAU?
Trabalho operacional, ou Business as Usual (BAU), ou Keeping the Lights On (KTLO), é visto sempre como um trabalho menos importante e menos “legal” do que o trabalho estratégico. Isso porque, das muitas confusões conceituais que temos no mundo dos negócios – especialmente negócios com grande influência da tecnologia – começamos a dizer que o trabalho estratégico é o trabalho importante a ser feito. Com certeza já escutou a frase de algum líder “Temos que executar [nome da atividade] porque é estratégico” quando na verdade o que ele quer dizer é “Alguém acima de mim me cobrou um prazo de entrega para [nome da atividade]”.
O segundo motivo pelo qual o trabalho BAU ganhou a fama de vilão dentro das empresas é que ele é frequentemente confundido com a correção de bugs e resolução de problemas que um produto ou serviço de software que está em operação. Mais uma vez, voltando para as minhas experiências e conversas com colegas, este estigma se dá devido a um processo de desenvolvimento de software em cascata. Funciona assim: 1) Um novo produto está sendo construído; 2) Todos envolvidos estão empolgados com a novidade de trabalhar em algo novo; 3) O time recebe as telas que devem ser desenvolvidas e implementadas; 4) O software é desenvolvido sem ciclos de feedback de clientes e stakeholders; 5) Ao final do desenvolvimento, o software é colocado em produção e passado para o time de sustentação; 6) Devido à primeira interação com o cliente, vários problemas começam a surgir para um time que mal conhece a arquitetura e código do produto; 7) Por fim, o time de sustentação se encontra desmotivado e infeliz com o trabalho de corrigir problemas que não foram eles que criaram.
Mesmo que sua empresa ou time diga que está usando agilidade, é extremamente comum se deparar com este tipo de fluxo de trabalho e perceber o motivo das pessoas chamarem o trabalho estratégico de importante e o trabalho de BAU como chato.
Exemplo BAU no dia-a-dia
Suponhamos que você compre um carro. Esse carro é o principal meio de transporte da sua família. Você o usa para ir ao trabalho, levar as crianças para a escola, fazer compras para sua casa e viajar de férias com sua família. Constantemente, esse carro tem que ser abastecido, ter seus pneus calibrados, encher o reservatório de água do limpador de parabrisas e completar o fluido do radiador. Caso estas manutenções não sejam realizadas, você provavelmente colocará em risco o valor que este carro tem na vida de sua família, pois ele, muito em breve, não sairá da garagem.
Além das manutenções corriqueiras, a cada 10 mil KM rodados, o carro precisa passar por uma revisão, onde é checado a parte mecânica, como óleo do motor e freios, pastilhas, filtro do ar condicionado, dentre outros. E a cada 40 mil KM, provavelmente, terá que trocar os pneus e amortecedores que estão gastos, por peças novas – e talvez mais atualizadas que chegaram ao mercado. Não é estranho termos um carro de 2018 com peças fabricadas em 2023.
O exemplo acima ilustra exatamente a importância que o trabalho de manutenção e pequenas melhorias traz para um veículo e o mesmo acontece dentro das empresas. De acordo com o David Robinson, Sócio de Transformação Digital da Thoughtworks, o volume de investimentos em manter a operação rodando em uma empresa é de, em média, 80%. Isso quer dizer que, se sua empresa tem uma operação com custo de R$1 milhão, R$800 mil são destinados para que a máquina continue girando – e seu cliente obtendo o valor entregue pela sua empresa. Apenas 20% é destinado a trabalhos estratégicos para buscar novas formas de competitividade no mercado.
Sabendo disso eu te pergunto: qual é o trabalho importante sendo executado dentro da sua empresa mesmo?
O Fluxo de Comunicação
Antes de começarmos a aprofundar na gestão do trabalho de BAU, precisamos, primeiro, entender o desenho organizacional da nossa empresa. Isso é importante pois, segundo a Lei de Conway, a arquitetura de um software seguirá o fluxo de comunicação de uma empresa. Na prática, isso significa que, se meu desenho organizacional for expressado por uma estrutura hierárquica, duas áreas distintas terão dificuldade de se comunicar, pois não possuem ligação, como na figura abaixo.
Sabemos que o desenvolvimento de produtos/serviços complexos, como softwares, precisa de um nível de colaboração e comunicação frequentes, para que o valor gerado ao cliente possa estar em constante evolução. A ferramenta que trazemos para abordar o desenho organizacional e, consequentemente, sua evolução, é o Team Topologies.
Team Topologies é uma metodologia criada por Matthew Skelton e Manuel Pais que busca organizar negócios e tecnologia para um fluxo rápido de geração de valor. De forma simples, a metodologia utiliza 4 variações de times e 3 modos de interação.
Tipos de Times
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Stream-aligned Team: responsável pelo fluxo constante de trabalho alinhado a um domínio de negócios ou capacidade organizacional;
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Enabling Team: time de especialistas que busca preencher a lacuna de conhecimento de alguma capacidade técnica no Stream-aligned Team;
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Complicated-Subsystem Team: responsável por desenvolver e manter partes do produto/serviço que depende fortemente de conhecimento de especialistas;
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Platform Team: responsável por habilitar a entrega dos Stream-aligned Teams com uma autonomia substancial.
Modos de Interação
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Colaboração: trabalhar juntamente com outro time;
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X-as-a-Service: consumir ou prover algo como o mínimo de colaboração;
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Facilitação: ajudar ou ser ajudado por outro time para eliminar impedimentos.
Reparem no exemplo abaixo que não temos nenhum time de desenvolvedores, designers ou setores como suporte, pois buscamos o fluxo rápido de geração de valor mais que organizar cargos em silos.
Modelo Operacional Focado no Cliente
Agora que já temos o desenho organizacional em mãos, vamos entender como podemos capturar e organizar o trabalho BAU a ser entregue de forma que permita a evolução contínua do meu produto/serviço e traga propósito ao mesmo tempo.
O trabalho BAU pode ser classificado como o trabalho de executar pequenas melhorias, correções e o pagamento do débito técnico gerado a partir de trade-offs no desenvolvimento de novas funcionalidades. Isso significa que, igualmente ao trabalho estratégico que falamos no artigo anterior, o foco deste trabalho é o valor gerado ao cliente.
Para este cenário, gosto de utilizar o modelo proposto por Gary O’Brien, Diretor de Transformação Digital da Thoughtworks. No modelo ele explica que o cliente está no centro da sua operação. Este cliente, por sua vez, determina quais resultados eles esperam obter ao utilizar o seu produto ou serviço na busca de obtenção de valor. Estes resultados esperados pelos clientes, irão determinar quais métricas utilizar para medir o sucesso do meu produto/serviço. As métricas irão definir o trabalho a ser realizado e, o trabalho a ser realizado, determinará as habilidades necessárias para completá-lo. Com as habilidades necessárias definidas, posso, então, montar o meu time que irá fazer com que toda roda gire até a geração de valor ao cliente. Diferente do modelo habitual, onde os resultados esperados são internos (i.e. faturar R$200 milhões) e as métricas são criadas após a definição do trabalho, o modelo operacional proposto pelo Gary centraliza o cliente e faz com que todo trabalho se desenrole a partir dali.
Objetivos e Resultados-Chave para BAU
Com o cliente no centro, e os resultados esperados definidos pela sua necessidade, podemos então definir as métricas que guiarão o nosso sucesso. Para isso, utilizaremos a metodologia proposta por Andy Grove, da Intel, e disseminada por John Doerr, seu discípulo, no Google e, depois, pelo mundo todo. Essa metodologia é o OKR ou Objectives and Key-Results (Objetivos e Resultados-Chave, em tradução livre).
Com o boom das transformações digitais em meados de 2018 aqui no Brasil, empresas de todo mundo e de todos os segmentos foram buscar nas grandes empresas de tecnologia – Google, Amazon, Facebook, Spotify e outras – formas de trabalhar que habilitassem o uso da tecnologia dentro das empresas e, muitas delas se deparar com uma forma de manter times e indivíduos focados em objetivos comuns, o OKR.
Não iremos aprofundar nesta metodologia neste post, você pode conhecer mais no site do próprio John Doerr aqui. O básico que precisamos saber é que ela combina o Objetivo inspirador que irá direcionar as pessoas que estão buscando atingi-lo e os Resultados-Chave como forma de medir o progresso feito rumo a este objetivo.
Encontrando Oportunidades em BAU
Além de correções de bugs e débitos técnicos fazerem parte do backlog de um time, esse time está sempre buscando atingir seus objetivos através de pequenas melhorias que se adaptam às mudanças de necessidade dos clientes e do mercado. Para isso, um time de produto/serviço deve ter em seu processo de captura e criação de itens do backlog, a busca por oportunidades e o trabalho orientado a hipóteses. O trabalho orientado a hipóteses garante que 1) Não conseguimos prever o futuro e 2) Trabalhe em pequenos lotes que me permitem a adaptação em cenários complexos, como desenvolvimento de software.
Para esta tarefa, trazemos a Árvore de Oportunidades e Soluções, proposta por Teresa Torres, uma das maiores autoras, palestrante e consultora de Product Discovery do mundo. A proposta da autora é que, a partir de um objetivo ou resultado esperado, você consiga capturar oportunidades que podem levar nosso cliente a atingir o resultado desejado e, como consequência, os objetivos definidos por nós no OKR. Por sua vez, cada oportunidade carrega várias possíveis soluções, que estão conectadas a experimentos que validarão as suas hipóteses. Assim, ao validar uma hipótese eu valido uma possível solução, ao validar uma solução eu capturo uma oportunidade e ao capturar uma oportunidade eu atinjo meu objetivo ou resultado esperado.
Como sei que várias pessoas devem já estar pensando em ferramentas a serem utilizadas em cada um desses nós, aqui vão alguns exemplos.
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Objetivo: OKR ou KPI.
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Oportunidade: Jobs to be done, design sprint, story mapping, lean inception, benchmarking.
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Solução: MVP, prova de conceito, prototipação, testes de usabilidade.
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Experimento: Teste A/B, fake feature, teste funil
Diferença para a LVT
Se você leu nosso post anterior sobre a gestão do trabalho estratégico deve estar pensando nesse momento: mas porque não usar a LVT para gerir o meu trabalho BAU? A LVT é feita para uma representação da estratégia de negócio e, apesar de possuir uma mecânica bem parecida com o que sugerimos acima, teríamos uma árvore tão grande, que seria inviável a sua atualização constante para uma visualização completa do que está sendo mantido e minimamente evoluído, além do trabalho estratégico. Seria muito fácil perder o foco estratégico em meio a tanto nó em uma árvore.
O segundo motivo, é que a gestão de investimento do trabalho estratégico e BAU é totalmente diferente. Enquanto no trabalho estratégico buscamos ser mais competitivos arriscando mais e melhorando nossa proposta de valor, no BAU buscamos manter os nossos clientes satisfeitos e ativos quanto a nossas soluções. Logo, apesar de ambas trabalharem com orientação a hipóteses, temos níveis de riscos e frequência de revisões dos trabalhos de forma diferente.
Conclusão
Claramente podemos ver que a gestão do trabalho BAU é tão importante quanto o trabalho estratégico e nada trivial de ser executada, muito pelo contrário do que se pensa. No trabalho BAU temos 80% do investimento das empresas, mas também temos a mesma quantia ou mais da sua receita.
Claro que existem outras tantas formas e diferentes combinações de ferramentas para realizar a gestão deste tipo de trabalho, mas focar sempre no cliente e o resultado esperado por ele, ter um desenho organizacional que habilita a comunicação correta dos times e evita silos de conhecimento, possuir um modelo operacional que não cause fricção na entrega de valor e manter um time focado e inspirado pelos objetivos são itens que não podem ficar de fora de nenhuma forma que pode vir a ser concebida.